O quarto estava frio, gélido como
sempre. Olhei para a garota do espelho e ela retribuiu meu olhar. Fiquei ali
parada a observando como de costume, e assim passei mais um dia vazio.
Sou
uma garota de treze anos antissocial. Não me identifico no meio que vivo. Meus
pais me ignoram e assim todos seguem o exemplo. Realmente não existo. Há alguns
dias atrás numa venda de garagem arrumei um espelho velho. Uma velharia
qualquer, mas me encantou desde o momento que vi. Em um ato infantil o roubei.
Ninguém pareceu se importar quando o peguei e sai correndo. Era só uma velharia
afinal.
Como
meus pais não estavam em casa foi fácil leva-lo até meu quarto. O coloquei
frente a minha cama. Não imaginava que esse espelho me traria algumas noites de
pesadelos. Então numa noite qualquer a vi. Estava ali com seus olhos fundos
imersos na mais negra escuridão, com a sua pele mais branca que a lua e seus
cabelos escuros como uma noite de inverno. Antes ela até me dava arrepios agora
não. Nunca me fez nenhum mal. Poderia dizer que apenas uma ilusão da minha
mente. Que sou um pouco louca eu sei, mas também sei que ela é real.
No começo ela me deu medo.
Sua face pálida como se estivesse morta, (sim provavelmente deve estar). Deve
ser a alma de alguma garota que morreu frente ao espelho, como nos livros e
filmes de terror. Talvez ela não passe de uma lembrança. Mas ela me faz bem,
minha única companhia.
Se cheguei a ser uma
pessoa normal em algum momento da minha vida, o fato de ter uma falecida no
espelho frente a minha cama mudara isso. Desde quando conheci a garota do
espelho, não sou mais a mesma. Ela é como uma lenda urbana, como aquelas
correntes que tropeçamos nos sites de relacionamentos a todo o momento: “ morri
no arame farpado se você não enviar isso para mil pessoas, você irá conhecer o
meu leito de morte”. Nesse caso ela está
presa no espelho que roubei.
Obviamente
no começo o medo me fez até tentar o tirar da parede. Tentei em vão, pois era
como se ambos fossem um o espelho e a parede. O cobri, mas ainda assim sentia o
olhar da garota sobre mim. Nunca acreditei no sobrenatural até me deparar com
ele no meu quarto. Mas o que eu sentia não era medo. Não. Agora me sentia menos
sozinha.
Em
uma das vezes que tentei tirar o espelho da parede um papel caiu, nele havia um
endereço. Resolvi chegar ao fundo daquilo. Eu ia descobrir quem era a garota do
espelho. Quando cheguei ao destinatário, havia achado que não passara de uma
viagem em vão. Uma casa abandonada, quase tão antiga quanto o espelho. Não
havia uma janela se quer inteira, e a porta estava beirando ao chão. Na entrada
havia uma pequena caixa de correio caÃda. Dizia Marvel’s. Era estranho como
naquele bairro aquela era a única casa abandonada. Por um segundo senti como se
aquela casa não existisse.
Sendo a atitude mais coerente
e idiota entrei na casa como aquelas mocinhas de filme de terror fazendo coisas
estúpidas. Por dentro a casa era menos adorável que por fora. Nada realmente interessante.
Uma mobÃlia peculiar que até combinava com aquele espelho velho. Não sabia o
que estava procurando, mas continuei ali, alias não entendia nem o real motivo
de estar naquele lugar imundo e caindo aos pedaços.
Espreitando-me
por cada canto da casa encontrei. Os papeis estavam numa gaveta meio quebrada
de uma escrivaninha duma espécie de escritório. Eram recortes de jornais
antigos. Todos sobre o mesmo caso de morte de uma garota.
“Finalmente encontraram o corpo da pequena
Mary Marvel, seus pais diziam sobre um suposto sequestro, mas na verdade a
menina esteve o tempo todo trancada no porão. Porém seus pais o negam e também
negam tê-la matado. Aparentemente pelas evidencias parecera suicÃdio. Seu corpo
jazia imóvel frente a sua penteadeira, seus pulsos com cortes fundos, mas sem
indÃcio de sangue. A empregada da casa a encontrou já morta, ao sentir o fedor
que o corpo expelia. Os pais choraram no velório, mas foram presos no dia
seguinte, mesmo negando a culpa...”
Abaixo
havia uma foto, eu a vi ali, a garota do espelho. Na fotografia seus olhos eram
azuis como o céu e tristes como os dias nublados, não os negros que eu
costumava ver, então senti compaixão.
Agora estou aqui, falando com ela, implorando para poder ao menos uma
vez ouvir sua voz, para me sentir melhor.
- Mary? – era a primeira vez que a chamava pelo nome e também era a primeira
vez que ela se movia. Naquele momento tive certeza que ela não era uma ilusão. Ela
era real e de alguma forma estava ali dentro. Mesmo estando morta.
- Eu soube da sua vida, alias acho que você deve saber disso. Sei que de alguma
forma fui manipulada até chegar a sua antiga casa, mas não entendi a mensagem
que você quis me passar... Você poderia falar comigo?! – a garota se moveu
novamente e virou-se para mim. Senti um arrepio subir minha espinha, senti medo
e ao mesmo tempo desejo. Desejo de vê-la sair dali de dentro, de entender o que
ela queria me dizer. Ela continuava calada, então desisti. Fui até minha cama e
me deitei sentindo os olhos negros sobre mim. Quando acordei, ela já não estava
mais ali. Senti o vazio de estar sozinha pela primeira vez desde quando ela
apareceu, mas continuava sem entender. Nada fazia sentido.
Dias
e noites se passaram sem a garota no espelho. Minha vida havia tomado aquele
tom monótono de novo. Sozinha novamente. Já passara algum tempo desde a última
vez que tinha visto meus pais. Só agora senti a falta deles. Aquela presença da
menina no espelho me reconfortava de alguma forma. Ia enlouquecer se ficasse
mais tempo sozinha.
Insistia
tanto para Mary aparecer, até pedi desculpas sem entender o porquê, mas ela não
aparecia. Eu me sentia tão sozinha.
- Mary, por favor – implorei novamente frente ao espelho vazio. Quando já havia
desistido ela apareceu. Sua aparência mortÃfera como sempre. Eu sorri, ela
sorriu junto, como se fossemos uma. Senti lagrimas molharem meu rosto, quando as
sequei com as costas das mãos vi sangue, muito sangue. O mundo começou a rodar.
Vi meu corpo na frente do espelho como se ele não me pertencesse, senti o
sangue jorrar de meus olhos.
Por
fim senti um puxão, o espelho me devorava como um monstro, em um segundo havia
caÃdo lá dentro, mas ainda me sentia fora. O Chão infestado de recortes de
jornais com fotos minhas. Li a manchete de um “Corpo encontrado, uma pequena
garota foi estrangulada e seus olhos decepados...” Então finalmente
entendi, a garota do espelho estava parada na minha frente. Ela estendeu sua
mão e a peguei. E ela me guiou pela escuridão, pelo caminho entre a vida e a
morte até então desconhecido...
Nota: Eu já tinha postado isso aqui há muito tempo atrás, mas resolvi dar uma revisada básica e postar novamente :3